Revista Oficial do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente / UERJ
NESA Publicação oficial
ISSN: 2177-5281 (Online)
Relato de Caso | Imprimir ![]() Páginas 97 a 101 |
Autores: Cláudia Patrícia Simões Mendes Arriaga1; Sílvia Neto2; Rita Moinho3; Graça Milheiro4; Alexandra Luz5; Pascoal Moleiro6 1. Médico Interno de Pediatria - Serviço de Pediatria - do Centro Hospitalar de Leiria. Leiria, AC, Portugal Cláudia Patrícia Simões Mendes Arriaga Recebido em 12/08/2015 ![]() ![]() Descritores: Imagem corporal, masculino, comportamento do adolescente, desenvolvimento muscular, medicina do adolescente.
Resumo:
INTRODUÇÃO
Ao longo dos tempos a sociedade foi evoluindo baseada em modelos, muitos vinculados pelas media1. O corpo tornou-se o elemento fundamental da própria identidade, com tendência à uniformização da diversidade humana. Os meios sociais promovem a imagem de perfeição centrada num corpo magro como símbolo de saúde e bem-estar1. A dieta, as restrições alimentares e o exercício físico surgem como meios para modificar o corpo e, consequentemente, para atingir a perfeição2,3. A procura da beleza e o culto de um corpo perfeito têm promovido o aparecimento de patologias psiquiátricas3. Nos últimos anos temos assistido ao aparecimento de novas adições, "adições sem droga"2, atividades aparentemente inócuas que o indivíduo realiza de maneira repetitiva, e lhe produzem satisfação, prazer e sensação de controlo com um objetivo definido2. Estas têm surgido em vários domínios, nomeadamente na atividade física, da qual a vigorexia é um exemplo. Esta é uma síndroma ainda controversa entre autores3-5 pela dificuldade de classificação. Caracteriza-se pela existência de pensamentos repetidos acerca da necessidade de exercício físico, com o objetivo de aumentar a massa muscular, e em que o indivíduo se vê mais magro do que é na realidade3. Apesar de referências prévias ao exercício como uma adição, foi nos anos noventa que surgiu uma entidade em que o exercício se convertia em obsessão6,7. Pope descreveu-a em 19936, designando-a de anorexia nervosa inversa pela semelhança com as perturbações do comportamento alimentar (PCA). Posteriormente, outras designações têm sido usadas: complexo de Adónis ou dismorfia muscular2,5,8. Atualmente, o diagnóstico diferencial é feito com as PCA9, principalmente numa fase em que se salienta a insatisfação com a imagem e o desejo de a alterar recorrendo à alimentação e à atividade física, perturbações estas que não devem ser esquecidas no sexo masculino10. As diferenças sobressaem quando o peso é relativizado, não existindo o medo de "estar gordo", mas a preocupação centrada nas formas corporais3,11. A preocupação e a conduta centradas num corpo percebido como pouco musculado, difere da insatisfação com partes específicas como sucede na perturbação dismórfica corporal. Os critérios diagnósticos baseados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) encontram-se no quadro 112. Apesar de estudos apontarem prevalências díspares, estima-se que de 6 a 10% dos frequentadores assíduos de academiasofram de vigorexia2,6. A maior incidência é no sexo masculino entre os 18 e os 25 anos2,6. Os autores pretendem alertar para uma patologia que estará subdiagnosticada e que interfere significativamente com o funcionamento global do adolescente. DESCRIÇÃO DO CASO Este estudo se baseia no caso de um adolescente de 17 anos, sexo masculino, caucasiano, referenciado à consulta de Medicina do Adolescente por dor muscular generalizada, mais localizada a nível dos ombros com um ano de evolução e intensidade crescente. O paciente negava traumatismo ou outro evento precipitante, e não apresentava queixas semelhantes previamente, nem evidente limitação da mobilidade, compromisso articular ou rigidez. A dor não tinha horário preferencial, e era exacerbada com movimento e esforço, aliviada em repouso, e não cedia a analgésicos, condicionando as atividades diárias. Não havia referência à presença de sinais inflamatórios locais e negava febre. O adolescente se dizia cansaço, com alteração do padrão de sono e perda de peso (6 kg num ano), tinha alterado os hábitos alimentares com seletividade para alimentos "saudáveis", restringindo outros que "o engordavam". Descrevia-se como um adolescente que sempre se alimentara bem, sem pensar em nutrientes ou calorias, algo que atualmente considerava fundamental para "um corpo saudável". Sempre foi um adolescente fisicamente ativo, mas há um ano e meio atrás iniciou a academia, primeiro esporadicamente e depois diariamente (2-3h) com preferência pelo halterofilismo. Incentivado por colegas, tomou suplementos proteicos durante dois meses, até os pais descobrirem e o proibirem. Negou o consumo de produtos anabolizantes, embora conhecesse colegas que o faziam. Por indicação médica, suspendeu o halterofilismo há dois meses, contudo sem noção de alívio das queixas e com um sentimento crescente de insatisfação pessoal, tristeza e até culpabilidade. Não gostava como se via, descrevendo-se como tendo braços finos, ombros estreitos, coxas delgadas, sem músculos, abdómen flácido e acumulação local de gordura. O adolescente vivia com os pais e uma irmã adolescente, saudáveis, mantendo um relacionamento conflituoso sobretudo com os pais. Frequentava o 12º ano escolar com bom aproveitamento até há um ano. Negava consumo de álcool, tabaco ou drogas ilícitas, raramente era convidado pelos colegas para sair. Negou relação amorosa recente e vontade para tal, assim como amigos preferenciais. Segundo os pais sempre evidenciou baixa autoestima, anulando-se perante os colegas e sobressaindo a insatisfação pessoal. À observação médica, destacava-se as faces triste, discurso monocórdico mas colaborativo, apresentava bom estado de nutrição e hidratação, massas musculares adequadas, com um índice de massa corporal (IMC) de 22,12kg/m2 correspondente ao percentil 50-75 (CDC growthcharts). Referia dor na mobilidade e palpação dos braços, ombros, coxas e região poplítea, embora sem clínica articular e sem adenopatias palpáveis. Auscultação cardíaca e pulmonar e palpação abdominal sem alterações, estadiopubertário 5 de Tanner. Ao exame mental destacava-se o humor triste e desagrado com a situação, baixa autoestima, discurso obsessivo centrado na imagem corporal. Realizou radiografia do tórax e ombros, ecografia abdominal e dos ombros sem alterações. Avaliação analítica sem evidência de anemia, sem alterações do hemograma, contagem plaquetar e função hepática e renal; parâmetros de inflamação negativos incluindo velocidade de sedimentação; análise sumária de urina sem alterações e com pesquisa de tóxicos negativa. Colocada como hipótese diagnóstica a vigorexia, o seguimento em consulta foi centrado no reforço de mecanismos de autovalorização, reiterando o autoconceito, estimulando a identificação de elementos disruptivos do seu equilíbrio, geradores de ansiedade, desagrado e frustração individual. Após a investigação complementar retomou a atividade física, com melhoria paulatina, verificando-se ganho ponderal associado a hipertrofia muscular, e uma alimentação regrada, pobre em gorduras e rica em proteínas. Aumentou 12,7kg num ano de seguimento, atingindo um IMC de 26,25kg/m2, exibindo com satisfação hipertrofia muscular do tronco e membros, sem queixas. Verbalizava, contudo, ambicionar melhores resultados e que se sentia "viciado" a academia, com uma motivação diária quase que obsessiva, questionando se poderia tratar de um caso de vigorexia. Uma vez evocado o diagnóstico de vigorexia, o pediatra e o pedopsiquiatra confirmaram-no. Foi feito o seguimento no sentido de identificar o seu mal-estar, vigiar as queixas e as respetivas limitações, a fim de retomar as atividades diárias com um crescente nível de envolvimento social e de atividade física sem prejuízo de outras áreas. O seguimento decorreu durante catorze meses, em consultas mensais e posteriormente bimensais, de Medicina do Adolescente e de Pedopsiquiatria. Foi proposta terapêutica com ansiolítico, que cumpriu (SOS) com melhoria da resposta às situações ansiogénicas. O controlo analítico e imagiológico aos seis meses apresentou-se sobreponível. O acompanhamento regular, a intervenção e orientação multidisciplinares, adaptadas às necessidades do doente constituíram o plano terapêutico. COMENTÁRIOS Este caso apresenta um adolescente com um sentimento de insatisfação pessoal, muito caraterístico da fase que é a adolescência. À semelhança de alguns adolescentes, a procura da sua identidade e de uma imagem que lhe confira aceitação e vantagem perante o grupo de pares, e perante a sociedade em geral, conduz a um nível de disfunção que cumpre critérios patológicos. As pressões sociais levam muitos adolescentes à procura da mudança, o que associado a um sentimento de autoridade perante o seu corpo e perante os seus atos os fazem sentir que conseguem tudo por si. Enquanto nas adolescentes o estereótipo é a magreza e o método mais habitual para o conseguir é o controle e manipulação da alimentação, no sexo masculino surge o ideal de corpos musculados e o exercício como forma de o alcançar. Assim, à semelhança das PCA no sexo feminino, nos rapazes emergem também estes distúrbios atualmente pertencentes às perturbações dismórficas12. A sua identificação é importante pois é uma entidade que se associa a uma complexa disfunção do adolescente em várias áreas, sendo crucial o seu reconhecimento para aí intervir12,13. A presença de autocrítica, reconhecendo o carácter obsessivo e disfuncional das suas ideias, constituiu o principal fator de bom prognóstico. A autocrítica foi um elemento facilitador da intervenção e consequentemente conduzindo a uma necessidade mínima de terapêutica farmacológica. Nestes adolescentes, à semelhança do descrito, inicialmente são percebidos sintomas da esfera obsessiva e até da conduta alimentar, o que leva à evocação de outras patologias dificultando o diagnóstico e a intervenção precoces. Existem sinais de alarme para os quais os clínicos deverão estar atentos: obsessão pela academia e/ou exercício físico compulsivo; insatisfação com o corpo; PCA; consumo de esteróides e outros anabolizantes3,12. Após a identificação desta identidade nosológica o tratamento passa pela intervenção conjunta em termos psicoterapêuticos e farmacológicos14. Para além da identificação precoce os clínicos têm um papel fundamental na prevenção. A intervenção da pedopsiquiatria é fundamental na complementaridade do seguimento contribuindo para um melhor prognóstico clínico e funcional. Diagnosticar, orientar e acima de tudo, alertar para os riscos inerentes a esta perturbação constituem o objetivo para qualquer profissional de saúde que trabalhe com adolescentes. REFERÊNCIAS 1. Peyró C, González C. La influencia de modelos somáticos publicitariosenla vigorexia masculina: unestudio experimental en adolescentes. Zer, 2011; 16: 265-284. 2. Molina JMR. Vigorexia: adicción, obsesión o dismorfia; un intento de aproximación. Salud y drogas, 2007; 7: 2007: 289-308. 3. Ribeiro PCP, Oliveira PBR. Culto ao Corpo: Beleza ou doença? AdolescSaude 2011; 8(3): 63-69. 4. Eisenberg ME, Wall M, Neumark-Sztainer D. Muscle-enhancing Behaviors Among Adolescent Girls and Boys. Pediatrics, 2012; 130:1019-1026. 5. Viadel MH, Mirallesa JLG, Viadel JVH. Dismorfia muscular, vigorexia o complejo de Adonis: a propósito de un caso. PsiqBiol 2005; 12: 133-5. 6. Pope HG, Katz DL, Hudson JI. Anorexia nervosa and "reverse anorexia" among 108 male bodybuilders. ComprPsychiatry1993; 34: 406-409. 7. 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Leone JE, Sedory EJ, Gray KA. Recognition and Treatment of Muscle Dysmorphia and Related Body Image Disorders. J Athl Train 2005; 40(4): 352-359. |