ISSN: 1679-9941 (Print), 2177-5281 (Online)
Official website of the journal Adolescencia e Saude (Adolescence and Health Journal)

Vol. 2 nº 2 - Abr/Jun - 2005

Compulsão e músculos: a busca por um corpo sem furos

Em recente artigo na revista Veja de 17/9/2003, intitulado A Conquista do Equilíbrio da Mente, o americano George Valliant, editor da respeitada publicação American Journal of Psichiatry, revela-nos que, se há décadas a psiquiatria centrou sua questão na doença mental, seu foco nos dias de hoje incide na saúde mental. “Do ponto de vista físico, o contrário da doença é simplesmente a saúde. Mas, na parte mental, saúde é muito mais do que ausência de sintomas. É ter uma mente que equivale, na biologia, a um corpo musculoso e com capacidade aeróbica”(1), diz-nos Valliant.

Podemos perceber, nas palavras acima, o reavivar dos princípios da psicologia positiva. Sabemos que o advento da psicologia moderna deve-se à idéia de que os métodos das ciências físicas e biológicas poderiam ser aplicados aos estudos dos fenômenos mentais, herança do pensamento filosófico e das pesquisas fisiológicas dos séculos 17 a 19.

O conceito básico do século 17, a filosofia que iria alimentar a nova psicologia, era o espírito do mecanicismo, a imagem do universo como uma grande máquina. A idéia de que todos os processos naturais são mecanicamente determinados, podendo ser explicados pela lei da física, resulta dos trabalhos de Galileu e, mais tarde, de Newton. Nessa era da máquina, a observação, a experimentação, a medição tornavam-se marcas distintivas da ciência. O mundo como um vasto relógio construído e movido pelo Criador, eis aí o espírito mecanicista do século 18.

Os relógios abriram caminho para a concepção de uma mecânica dos seres humanos investigada pelos mesmos métodos experimentais e quantitativos utilizados para desvendar os segredos do universo físico. Com a incidência do método científico na investigação da natureza humana, os homens se tornaram máquinas.

Nesses primórdios da ciência moderna, René Descartes (1596-1650) contribuiu diretamente para a história da psicologia. Transpondo o mecanismo do relógio ao corpo humano, ele simbolizou a transição da Renascença para a moderna era científica. Com isso, para muitos, Descartes inaugurou a psicologia moderna. Em sua visão dualista, o corpo era definido como uma substância extensa em oposição à substância pensante. Massa composta de osso e carne, o corpo é uma mecânica articulada comparada a um relógio composto de arruelas e contrapesos. O corpo do homem-máquina cartesiano resume-se, enfim, a um conjunto de molas e engrenagens, reduzindo-se sua alma a um princípio material, localizado no cérebro, que movimenta nosso organismo e nos habilita a pensar.

Após Descartes, a ciência moderna em geral e a psicologia em particular rapidamente se desenvolveram. Por volta de meados do século 19, o longo período da psicologia pré-científica chegara ao fim. Na época, o pensamento filosófico estava impregnado do novo espírito do positivismo, cujo interesse exclusivo reside nos fatos objetivamente observáveis e indiscutíveis. Boa parte da história da psicologia depois de sua separação da filosofia, lembremo-nos, consiste no contínuo aprimoramento de instrumental, técnicas e métodos de estudos para alcançar cada vez mais precisão e objetividade.

Em O Nascimento da Clínica, Foucault considera o nascimento da medicina moderna em torno dos últimos anos do século 18. Na ocasião, o surgimento da medicina clínica provém de uma experiência pedagógica que favorece a regulamentação da profissão médica e de seu ensino, inaugurando uma nova relação entre o olhar médico e a essência das doenças. Fundador do indivíduo em sua qualidade irredutível, esse olhar possibilita organizar em torno de tal sujeito uma linguagem racional, objetiva. Assim, poder-se-á, finalmente, pronunciar sobre o indivíduo um discurso de estrutura científica. O princípio de todo saber clínico – onde lhe dói? – substituirá a pergunta o que é que você tem?.

No final do século 18, o médico, ao aproximar-se do doente, percebia o que havia logo atrás da superfície visível, e, pouco a pouco, era levado a descobrir a doença na profundidade secreta do corpo. A passagem do Iluminismo para o século 19 se dá quando a doença é tomada na espessura do corpo, no momento em que a objetividade científica da racionalidade médica penetra na tessitura das coisas. Atento e vigilante, aberto apenas à evidência dos conteúdos sensíveis, fonte de clareza e da verdade, o olhar minuciosamente esquadrinha.

Em A Ciência no Corpo, Adauto Novaes considera o rascunho do genoma, receita para fabricar um ser humano, um dos grandes marcos da história da ciência. Trata-se aí da colocação em questão do próprio conceito de subjetividade. O fantástico avanço da medicina, os problemas na ordem, por exemplo, do pensamento, da ética, da política, as novas descobertas científicas, a transformação da própria noção de natureza demandam, enfim, conhecimentos de várias ordens.

Novaes aponta no século 21 a irreversível entrada nas biotecnologias. Se a ciência, afinal, decifra o código genético, tudo caminha, principalmente o corpo, para o artifício. Pensar o corpo como máquina, substituí-lo por máquinas inteligentes, intercambiar partes do corpo, trocando-as por matérias naturais nos conduzem à interrogação quanto à positividade e aos riscos no domínio científico do corpo.

Reportando-nos ao âmbito da psicanálise para nos incluirmos na polêmica atual, podemos dizer que, malgrado Freud ter inicialmente buscado na ciência fundamentos para suas descobertas, os modelos biológico, fisiológico, químico tatearão em novidade de zona estranha. A pulsão freudiana como um conceito fronteiriço entre as esferas da psicologia e da biologia nos revela desde o começo que não são simplesmente os órgãos genitais, mas muitas outras partes do corpo que constituem sede de excitação sexual.

Em O Interesse Científico da Psicanálise (1913), Freud afirma que a sexualidade não é simplesmente uma função que serve aos fins de reprodução, no mesmo nível que a digestão, a respiração, etc…. Ora, no campo psicanalítico, satisfazer a pulsão não se reduz a uma totalização biológica de função, mas implica, sempre, o retorno do circuito, da montagem pulsional. Na relação da pulsão com o real, encontramos o que Lacan chama de sujeito furado, sujeito acéfalo: “A montagem da pulsão é uma montagem que, de saída, se apresenta como não tendo nem pé nem cabeça – no sentido em que se fala de montagem numa colagem surrealista”(2).

Recentemente fui procurada para atendimento no Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, Hospital Universitário Pedro Ernesto, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NESSA/HUPE/UERJ) por Oto, um adolescente de 18 anos que não está suportando mais um terrível complexo de magreza que o persegue e que tem por efeito causar-lhe horror do próprio corpo que aparece, por exemplo, em sua obstinada busca de nele encontrar algum erro ou estranha feiúra, na angustiante obsessão de não se trocar na frente de ninguém e numa compulsão exaustiva de ter músculos. Sua barriga cheia de buracos, seus ombros e pernas finas, seu velho colete, sua brancura, tudo se multiplica em infindáveis queixas em relação ao próprio corpo.

Segundo o psicólogo Antônio Carlos Simões, coordenador do Laboratório de Psicossociologia do Esporte da Universidade de São Paulo, na revista Veja, Os Limites do Corpo (5/3/2003), corpo cultivado é o que não falta, sobretudo em novelas e reality shows, onde desfilam homens e mulheres com músculos estarrecedores. Influenciáveis e, para seu profundo desgosto, muitas vezes divididos entre magrelos e rechonchudos, os adolescentes são os primeiros a correr para a academia. Temos o caso de um advogado paulista, 29 anos, que se exercita sete dias por semana. Inicialmente, aos 16 anos, seu objetivo era perder peso. Hoje em dia, ele ainda quer definir melhor os músculos, à base de 2h30min de exercícios diários de musculação, esteira, natação e jiu-jitsu. “Gosto dos resultados, gosto de ver que estou com o abdômen definido, corpo de atleta”, orgulha-se. E confessa: “Faço mais do que o professor recomenda. Escondido, mas faço. Se ele sugere três exercícios para um determinado grupo muscular, faço quatro ou cinco”(3).

Se, para Freud, o Eu, sede real da angústia, é antes de tudo corporal, o adolescente Oto, por sua vez, ao idealizar-se numa perfeição imaginária, sofre em tentativas inesgotáveis de um controle soberano de seu corpo, corpo este que, para a psicanálise, se apresenta na dimensão do discurso, no âmbito da linguagem, no circuito pulsional em que as necessidades vitais, biológicas se transformam em demandas de amor. Oto, em nossos encontros, persiste buscando músculos ideais, no desejo permanente da perfeição de um corpo integrado, simétrico e a impossibilidade de alcançá-lo.

“Como quer que seja, o que o sujeito encontra nessa imagem alterada de seu corpo é o paradigma de todas as formas de semelhança que levarão para o mundo dos objetos um toque de hostilidade, projetando nele a transformação da imagem narcísea, que, do efeito jubilatório de seu encontro no espelho, transforma-se, no confronto com o semelhante, no escoadouro da mais íntima agressividade”(4).

Sabemos que Lacan diferencia radicalmente a psicanálise da adaptação do indivíduo ao meio social através da busca de patterns (padrões) de conduta. A experiência psicanalítica se distingue do ideal de harmonia pulsional, desnaturalizando o organismo, o corpo biológico. Há pouca chance, a seu ver, de que uma teoria do Eu seja marcada por algo além de um furo hiante.

Contrapondo-se às propedêuticas naturalistas e ao psicologismo que coisifica o ser humano, a psicanálise, enquanto prática subordinada em sua destinação ao que há de mais particular no sujeito, só pode ser considerada na ciência ao se colocar como um problema. Avesso ao human engineering (engenharia humana), à objetivação abstrata em princípios fictícios ou simulados do método experimental, Lacan considera a psicanálise no cerne do movimento que instaura uma nova ordem das ciências, com um novo questionamento da antropologia.

Para nós, psicanalistas, o mal-estar de Oto em relação a seu próprio corpo certamente não é permeável aos avanços biotecnológicos contemporâneos. A adolescência, longe de ser um momento do desenvolvimento de uma essência evolutiva chamada supostamente indivíduo, implica, para o sujeito que a atravessa, uma reformulação de grandes proporções em seu posicionamento subjetivo. O adolescente é convocado, num certo ponto de desamarração, a ter que se reapropriar de uma imagem corporal transformada. Ora, se o corpo se inscreve não numa referência pura e simples à necessidade, ao prazer ou à realidade, sujeitando-se inteiramente às complicações do psiquismo, podemos dizer que, tratando-se do humano, o subjetivo corrompe o biológico.

Produzindo aos poucos sentido e questão acerca de seu compulsivo desejo de músculos e de um corpo sem furos, esse sujeito adolescente em suas angústias, em seus impasses, situa-se num campo de batalha. Escutá-lo implica irredutivelmente definir uma análise como um campo orientado para o que na experiência é o núcleo do real, algo da dimensão do inassimilável, do encontro sempre faltoso jamais recoberto plenamente pelo discurso. O corpo aí será sempre esse inimigo próximo, estranho íntimo, desamparada carne fresca no pedaço, diz-nos Oto.

Bibliographic References

1. Freud S. Obras Completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1977.

2. Lacan J. O Seminário Livro 11 (1964). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

3. Lacan J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

4. Novaes A. (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

5. Novaes A. (org.). O homem máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

6. Ropa D, Maurano D. (coord.). Agenda de psicanálise. O corpo na psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

7. Schultz DP, Schultz SE. História da psicologia moderna. São Paulo: Editora Cultrix, 1981.

1. Psicanalista; mestra em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ); graduada e licenciada em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ); doutora em Comunicação pela Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ; psicóloga do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, Hospital Universitário Pedro Ernesto, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NESA/HUPE/UERJ).