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A adolescência, longe de ser um momento de desenvolvimento de uma essência evolutiva chamada supostamente indivíduo, implica, para o sujeito que a atravessa, uma reformulação de grandes proporções em seu posicionamento subjetivo. O adolescente é convocado, num certo ponto de desarrumação, a ter que se reapropriar de uma imagem corporal transformada. A inquietante estranheza na relação com este corpo submetido a intempestivas modificações e às intempéries do mundo se revela na adolescência, como por exemplo, nas freqüentes manifestações dismorfofóbicas, nas queixas hipocondríacas, nos pânicos de distúrbios sexuais.
Recentemente fui procurada para atendimento no setor de Saúde Mental do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente, Hospital Universitário Pedro Ernesto, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NESA/HUPE/UERJ) por Ana, adolescente de 16 anos que chegou ao NESA com dores que se alastram pelo corpo todo. Nada orgânico pôde ser detectado, os exames assim o atestam. A nutricionista lhe disse que estava à beira da desnutrição. Seu mal-estar resultou em vontade de fazer nada e a impediu de freqüentar a escola por algum tempo. Além disso, sente-se culpada, à sua revelia. Nas constantes noites de insônia, pensa compulsivamente que nunca mais ficará boa.
A atual realidade, pela qual se responsabiliza, tem se resumido a ficar em casa e relata que não consegue “nem ao menos trabalhar com as mãos, escrever os deveres da escola, devido ao incômodo e à dor nas articulações”. Indaga: “Por que as coisas têm sempre que acontecer comigo? Não aceito não ir à escola”.
O médico lhe indicou sessões semanais de fisioterapia, mas foi a própria fisioterapeuta quem lhe sugeriu um atendimento psiquiátrico, mencionando a necessidade de medicação. As dores persistem mesmo com a fisioterapia. Então comenta: “Às vezes tenho dores e não estou me sentindo mal; noutras ocasiões estou sem dores e muito mal”.
Ao tomar o presente artigo à luz da psicanálise, podemos afirmar que o corpo aí se apresenta na dimensão do discurso, no âmbito da linguagem, e, em suma, será sempre esse estranho íntimo que desnaturaliza o organismo. Ora, se a dimensão corporal se inscreve não numa referência pura e simples à necessidade, ao prazer ou à realidade, sujeitando-se inteiramente às complicações do psiquismo, podemos dizer que, tratando-se do humano, o subjetivo corrompe o biológico.
Avesso ao human engineering, à objetivação abstrata em princípios fictícios ou simulados do método experimental existentes nas psicoterapias contemporâneas, o corpo sobre o qual Ana fala a singulariza. Sabemos que na clínica psicanalítica os sujeitos, por intermédio de seus corpos, nos remetem à importância do olhar do outro. Apresentando-se como bulímicos, anoréxicos, sofrendo, enfim, das mais diversas formas de compulsão, eles desvelam primordialmente a existência de uma hiância entre os processos fisiológicos e o corpo simbólico, objeto de sedução, submissão e até de sacrifício. Lacan assinala: “Como quer que seja, o que o sujeito encontra nessa imagem alterada de seu corpo é o paradigma de todas as formas de semelhança que levarão para o mundo dos objetos um toque de hostilidade, projetando nele a transformação da imagem narcísica, que, do efeito jubilatório de seu encontro no espelho, transforma-se, no confronto com o semelhante, no escoadouro da mais íntima agressividade”(1).
Imersos, afinal, num mundo onde as imagens podem ser comparadas a bombas que veiculam mensagens invisíveis, deparamo-nos, hoje, com a ameaça constante de nos tornarmos corpos dóceis ao consumo, ao fascínio da mercadoria. No momento atual de nossa cultura, em que o corpo é tomado na lógica da mercantilização, em que o visível encobre o enigma fundamental do sujeito perante o sexo e a morte, faz-se necessária a criação de espaços de discussão onde profissionais de distintas áreas possam trazer suas contribuições para uma prática de trabalho que privilegie o sujeito em sua relação problemática com o desejo.
Ao diferenciar a psicanálise de psicoterapias ortopédicas contemporâneas, nós, psicanalistas, sabemos da impossibilidade de alcançar a perfeição imaginária de um corpo integrado e simétrico. A pulsão freudiana, força que emana da fronteira entre o biológico e o psíquico, atesta a desnaturação de todo sujeito humano, cuja dimensão corpórea, inimigo próximo, será inexoravelmente atravessada por uma certa estranheza íntima. É o que nos confirma a adolescente Ana ao mostrar-me, numa entrevista, manchas escuras em seu corpo, conhecidas como melancolia. Diante do médico que lhe diz que tudo isso deve ser psíquico, ela exclama: “Como pode o psiquismo produzir tal coisa? Eu não consigo entender!”.
1. Lacan J. Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998;823.
2. Freud S. Obras completas. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora. 1977.
3. Lacan J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998.
4. Rassial, J-J. O adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora. 1999.
5. Ropa D, Maurano D (coord.). Agenda de psicanálise 2: o corpo na psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
6. Vilhena M. Compulsão e músculos: a busca por um corpo sem furos. Adolescência & Saúde. 2005;2(2):30-2.
1. Psicanalista; mestre em Psicologia Clínica (PUC-RJ); graduada e licenciada em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ); doutora em Comunicação pela Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ); psicóloga do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/HUPE/UERJ).