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INTRODUÇÃO
Este artigo destina-se a discutir alguns problemas renais em adolescentes. Ele apresenta uma variedade de condições habituais para profissionais que atendem esse grupo etário.
Vários aspectos podem contribuir para a origem das doenças renais, entre eles fatores genéticos, anatômicos, dietéticos e infecciosos. Alguns dados epidemiológicos e mecanismos fisiopatológicos dessas enfermidades evidenciam os adolescentes como grupo vulnerável a determinadas condições. Como exemplos podem-se citar as infecções urinárias em adolescentes sexualmente ativas e as complicações renais de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Além disso, muitas crianças que apresentam refluxo vesicoureteral (RVU) e infecções urinárias de repetição evoluirão para nefropatia de refluxo e dano renal, com manifestações de insuficiência renal crônica na adolescência.
A anamnese de um adolescente com suspeita de doença renal deve incluir avaliação dos sinais e sintomas recentes, investigação de adoecimentos anteriores, levantamento da presença de doenças sistêmicas e renais em familiares, detalhamento dos hábitos alimentares e cuidadosa investigação das medicações utilizadas anteriormente.
A suspeita de doença renal deve ser investigada através de exames complementares e métodos de imagem sempre que a anamnese e o exame físico detectarem os seguintes sinais e sintomas: edema, hipertensão arterial, alterações urinárias (de volume, composição e distúrbios da micção), dor em loja renal, disúria e estrangúria, atraso no crescimento e no desenvolvimento puberal, palidez e adinamia.
GLOMERULONEFRITES
São definidas como o grupo de doenças inflamatórias que atingem principalmente o glomérulo. Até hoje não se conhecem de forma clara os mecanismos responsáveis pelo seu aparecimento. As doenças glomerulares são, de uma maneira geral, pouco freqüentes, entretanto são importantes por estarem entre as três principais causas de insuficiência renal crônica terminal.
Diferencia-se a glomerulonefrite primária (idiopática) da secundária. A primeira apresenta causas ainda desconhecidas, enquanto a segunda é conseqüência de doenças sistêmicas (lúpus eritematoso sistêmico[LES] e outras doenças do tecido conjuntivo, diabetes mellitus, infecções e medicamentos).
Em bases clínicas, podemos descrever três quadros distintos de manifestação das glomerulonefrites:
- síndrome nefrítica aguda-caracteriza-se pelo aparecimento repentino de hematúria, algumas vezes proteinúria e diminuição da filtração glomerular. Ocorre retenção de água e sal, ocasionando hipertensão arterial, edema e diminuição do volume urinário. O exemplo típico da síndrome nefrítica é a glomerulonefrite aguda pós-infecciosa, que surge em geral uma ou duas semanas após uma infecção estreptocócica. Na maioria das vezes o tratamento é apenas sintomático, havendo remissão completa do quadro. A presença de encefalopatia hipertensiva ou edema agudo de pulmão determina intervenção imediata. A hematúria microscópica pode permanecer por um período de até um ano após o quadro inicial e, na ausência de outra alteração, não há indicação de cronicidade;
- glomerulonefrite rapidamente progressiva-caracteriza-se pela súbita perda da função renal. A conduta terapêutica deverá ser enérgica e rápida, sob o risco de comprometimento irreversível;
- síndrome nefrótica (SN)-é definida por proteinúria (acima de 3g/dia), hipoalbuminemia, edema e, freqüentemente, hipercolesterolemia. Em geral a anamnese revela o aparecimento inicial de edema periorbitário, que desaparece pouco tempo após o despertar. Nessa fase do processo não é pouco freqüente o diagnóstico de alergia. Na evolução da síndrome nefrótica, passa-se a observar edema em membros inferiores e, se o quadro edemigênico for mais acentuado, há relato de ascite e edema escrotal, no sexo masculino, e dos grandes lábios, no feminino.
A SN em crianças (pré-escolares e escolares) na maioria das vezes é idiopática e tem bom prognóstico a longo prazo. Em adolescentes, a presunção de lesão benigna não pode ser feita. Cerca de dois terços dos pacientes nefróticos na idade de 10 a 20 anos têm outro diagnóstico que não o de lesão mínima (LM), podendo a SN ser inclusive a manifestação de uma doença sistêmica. No nosso ambulatório, as duas principais etiologias causadoras de SN nessa faixa etária são a LM e a glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF). Contudo outras causas não podem ser omitidas, como infecciosas (sífilis,hepatite B,HIV), neoplásicas (linfomas) e colagenoses (LES).
A indicação de biópsia nos casos de SN nesse grupo etário deve ser feita com muita prudência. Alguns recomendam um curso prévio de tratamento com corticosteróides, entretanto algumas situações apontam para sua indicação quase que incondicionalmente: hematúria significativa na ausência de infecção, hematúria persistente com hipertensão arterial e hipocomplementenemia.
Uma vez feito o diagnóstico de SN, devese ter como objetivo o tratamento adequado da doença e de suas complicações, além da interferência mínima nas atividades habituais, no estado nutricional, no crescimento e no desenvolvimento físico e emocional do adolescente.
INFECÇÃO URINÁRIA
A infecção do trato urinário (ITU) é uma importante causa de morbidade em adolescentes do sexo feminino. Cerca de 20% das adolescentes e das jovens relatam pelo menos um episódio de ITU durante essa fase da vida; várias sofrem recorrências de infecção no período de seis meses após o primeiro episódio. A prevalência de ITU no sexo feminino é de 20:1 em relação ao masculino.
Alguns fatores de risco estão associados a maior incidência e recidivas da doença nesse período etário, destacando-se higiene perineal inadequada, higiene peniana inadequada (especialmente em adolescentes não-circuncidados), início de atividade sexual ou novo parceiro sexual, uso de agentes espermicidas, gravidez, retardo em urinar após relação sexual e inserção de corpos estranhos na uretra.
Em crianças, cerca de 30%-50% dos casos de ITU estão associados a RVU. Na grande maioria dos adolescentes do sexo feminino as ITU são infecções não-complicadas, que normalmente não estão associadas a alterações anatômicas do trato urinário. Por outro lado, sugerem início de atividade sexual.
A disúria é uma queixa bastante freqüente em adolescentes do sexo feminino. A avaliação diagnóstica dessas pacientes deve distinguir dois grupos de doenças: urinárias (cistites,uretrites e pielonefrite) e genitais (cervicites e vulvovaginites). Além disso, há uma alta taxa de justaposição de ITU e vaginites. Por esse motivo, alguns autores recomendam a investigação para DSTs em todas as adolescentes sexualmente ativas com diagnóstico de infecção urinária.
Suspeita-se de pielonefrite quando, além dos sintomas correlacionados ao trato urinário (polaciúria, urgência miccional, disúria, hematúria macroscópica, desconforto ou dor em hipogástrio), o paciente apresentar febre alta, acometimento do estado geral (sinais de toxemia) e/ou dor lombar.
Em relação ao diagnóstico etiológico, o primeiro episódio de infecção urinária em adolescentes do sexo feminino pode dispensar a cultura de urina, o mesmo não se aplicando às infecções que não respondem ao tratamento inicial de escolha e à primeira infecção nos adolescentes do sexo masculino.
O tratamento das infecções urinárias agudas baixas não-complicadas em mulheres poderá ser feito com diversos esquemas terapêuticos, com duração de três dias: sulfametoxazol-trimetoprima 800mg/160mg a cada 12 horas; norfloxacino 400mg a cada 12 horas; ciprofloxacino 250mg a cada 12 horas; ofloxacino 200mg a cada 12 horas.
No tratamento das infecções urinárias em adolescentes do sexo masculino, em pacientes diabéticos, naqueles com história recente de ITU ou sintomas por mais de uma semana, deve-se utilizar uma das drogas acima, porém durante uma semana.
LITÍASES
Na maioria das vezes não é possível a determinação de um só fator etiológico para a urolitíase; entre os fatores que contribuem para o seu aparecimento podem ser citados os genéticos, ambientais, dietéticos, metabólicos e infecciosos. Nos últimos anos houve aumento do número de casos na população pediátrica, provavelmente devido a mudanças sociais e nos hábitos alimentares.
A urolitíase em adolescentes pode ter apresentações clínicas diversas, como cólica renal aguda, infecção urinária, hematúria macroscópica ou assintomática, ou ainda ser achado incidental de um exame de imagem. Em raras ocasiões podese apresentar como insuficiência renal aguda por obstrução dos dois ureteres ou de um deles, em situações de um rim único funcionante.
Suas principais causas são:
- infecção-acarreta a formação de cálculos se originada por bactérias produtoras de urease, que, por elevarem o pH urinário, facilitam a precipitação de sais;
- anatômicas e/ou funcionais-modificam a dinâmica urinária e podem ocasionar estase, potencializando infecções e facilitando a cristalização;
- metabólicas-hipercalciúria, hiperexcreção de ácido úrico, hipocitratúria, hiperoxalúria, cistinúria, acidose tubular renal.
O estudo metabólico dos fatores envolvidos na formação de cálculos urinários é um enfoque recente que tem por objetivo a prevenção da doença litiásica. Deve ser realizado pelo especialista após a fase aguda de dor e/ou eliminação de cálculos.
O tratamento da cólica renal inclui medidas sintomáticas para controle da dor e hidratação. A internação hospitalar está indicada quando há vômitos incoercíveis, dor de difícil controle domiciliar, infecção do trato urinário com obstrução, rim único ou rim transplantado. Após a resolução do quadro álgico, uma conduta expectante, com orientações gerais (ingestão de líquidos e orientação dietética) poderá ser adotada para cálculos pequenos (menores que 4mm) localizados em ureter distal ou para cálculos renais não-obstrutivos.
Quando os cálculos não são eliminados espontaneamente, pode ser necessária cirurgia ou litotripsia extracorpórea.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo os autores procuraram destacar os principais aspectos das doenças renais em adolescentes. O diagnóstico precoce de algumas doenças tem fundamental importância, visto seu potencial de conversão em insuficiência renal crônica. Citam-se como exemplo alguns estudos demonstrativos de que após uma semana de infecção os rins podem apresentar cicatrizes importantes em seu parênquima e o tratamento eficaz com antibióticos pode produzir grandes melhoras histológicas.
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1. Professora-assistente da disciplina de Medicina de Adolescentes do Departamento de Medicina Interna da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM/UERJ); médica da Atenção Secundária do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/UERJ);doutoranda da pós-graduação em Saúde da Criança e da Mulher da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).
2. Médico do Serviço de Nefrologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE/ UERJ);doutor em Medicina pela Universidade de Melbourne.
3. Professora-adjunta da disciplina de Nefrologia do Departamento de Medicina Interna da FCM/UERJ;doutora em Nefrologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNIFESP).