INTRODUÇÃO
A adolescência corresponde à segunda década da vida, entre 10 a 19 anos, e compreende uma etapa importante no desenvolvimento humano. É caracterizada pela síndrome da adolescência normal, que se evidencia pela busca de identidade, tendência grupal, desenvolvimento do pensamento conceitual, vivência temporal singular e evolução da sexualidade
1.
Estatísticas evidenciam a expressiva representatividade de jovens na população mundial, entre 10 e 24 anos, perfazendo um total de 1,8 bilhão de pessoas
2. No Brasil, existem 34 milhões de adolescentes, representando 18% da população
3. Em vista do contingente de adolescentes, principalmente em países em desenvolvimento como o Brasil, é fundamental investir nesta população, sendo fator preditivo para romper o ciclo de pobreza e iniquidade que prejudica comunidades e países, colocando em perigo o desenvolvimento e direitos de um número incontável de adolescentes
1. Assim, políticas e ações de saúde que aprimorem a atenção fornecida ao adolescente devem ser priorizadas, devendo compreender o adolescente além da vulnerabilidade, mas como detentor de potencialidades, podendo ser responsável por mudanças e melhorias que impactem em sua qualidade de vida.
A Atenção à Saúde do Adolescente no Brasil é orientada, há mais de duas décadas, por projetos específicos a fim de garantir um atendimento singular que contemple as peculiaridades desta fase do ciclo de vida. No entanto, apesar dos esforços, o cuidado dispensado a este grupo continua fragmentado, apresentando fortes evidências de práticas voltadas ao assistencialismo, que se opõem às concepções promotoras de saúde
4.
A abordagem ao adolescente deve ser diferenciada e utilizar-se de estratégias criativas de educação e promoção da saúde, por isso o uso de tecnologias, como instrumentos validados, podem contribuir com essa abordagem junto às equipes na Atenção Primária à Saúde (APS). No entanto, a literatura tem apresentado incipiência quanto à produção científica acerca do desenvolvimento e uso de instrumentos validados voltados ao profissional que atua junto ao adolescente e que orientem processos de cuidar
5.
Referindo-se ao trabalho do enfermeiro no contexto da APS, evidencia-se uma lacuna no que concerne às ações voltadas ao adolescente na atual prática assistencial, sinalizando para a necessidade de mudanças no trabalho deste profissional
6.
Em vista ao exposto, este estudo objetivou construir e validar um instrumento para subsidiar o cuidado ao adolescente na APS, se constituindo em uma ferramenta que pode contribuir para a condução de novas práticas, uma vez que pode auxiliar o enfermeiro e outros profissionais da saúde para o cuidado deste segmento populacional.
MÉTODOS
Este estudo metodológico ocorreu entre agosto de 2012 e março de 2014, em Sobral/CE/BR, envolvendo as áreas adstritas de duas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Estas foram escolhidas por conterem grande número de adolescentes, disporem do maior número de profissionais da saúde entre as UBS do município e por abrangerem escolas de ensino médio e fundamental.
O estabelecimento dos itens que compõem o instrumento ocorreu a partir de buscas na literatura, da vivência dos autores e da escuta de 18 adolescentes, 6 pais de adolescentes, seis professores e 17 profissionais da APS (médicos, nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, odontólogos, educadores físicos, assistentes sociais, farmacêuticos e psicólogos). A coleta de informações ocorreu por meio de entrevista semiestruturada e a amostra foi estabelecida por conveniência. Os adolescentes abrangeram a faixa etária entre 10 e 19 anos e as três etapas da adolescência (inicial, intermediaria e final) foram contempladas
7. Ao todo, 66 itens compunham o instrumento inicial a ser submetidos aos juízes.
Participaram 10 juízes, os quais foram identificados mediante técnica da bola de neve
8, e incluídos a partir dos seguintes critérios: ser profissional de nível superior e possuir reconhecida experiência na gestão, assistência, pesquisa ou docência na área de Saúde do Adolescente e/ou experiência em construção de instrumentos. Esse grupo foi composto por enfermeiros, médicos, assistentes sociais e uma pedagoga, com as seguintes formações: 3 doutores (pediatria, nutrição e enfermagem), 1 mestre (saúde do adolescente) e 6 especialistas (atenção integral à saúde do adolescente).
Os juízes receberam o material via e-mail ou presencialmente e contaram com: carta de apresentação, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ficha de caracterização do juiz e instrumento de avaliação dos itens. Neste último, além da solicitação de avaliação de cada item, também foi disponibilizado espaço para recomendações e opiniões sobre o instrumento em desenvolvimento.
Na validação de conteúdo os juízes avaliaram o instrumento como um todo, analisando sua abrangência, isto é, se cada domínio ou conceito foi adequadamente coberto pelo conjunto de itens e se todas as dimensões foram incluídas, e sua pertinência, podendo sugerir a inclusão ou a eliminação de itens. Na validação de aparência, foi verificada a apresentação, clareza, facilidade na leitura e interpretação, objetividade, simplicidade e organização dos itens
9.
Para a validação de conteúdo, os juízes avaliaram os itens quanto à abrangência, relevância do item para a saúde do adolescente e pertinência. Também foi empregado o Índice de Validade de Conteúdo (IVC), considerando como taxa aceitável de concordância valores acima de 80%.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual Vale do Acaraú, sob o parecer n° 470.653, de 6 de novembro de 2013. Utilizou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, para os adultos, e de Assentimento, para os adolescentes.
RESULTADOS
Os itens incluídos no instrumento tratam sobre sexualidade, gravidez, uso de drogas, relacionamento com a família, trabalho, inserção no ensino superior, funcionamento de serviços de saúde, criminalidade, grupos, aspectos fisiológicos e patológicos do crescimento e desenvolvimento do adolescente.
No processo de validação de conteúdo, o IVC médio correspondeu a 92%, variando entre 82 % e 100%. Na validação de aparência, as alterações recomendadas discorreram sobre: itens que deveriam ser direcionados de uma para outra faixa etária; organização de uma forma que mostrasse uma interrelação entre os itens; e reduzir o número de itens, a partir da eliminação de redundâncias. A síntese das recomendações está expressa no quadro 1.

A escrita dos itens ganhou mais objetividade, distanciando-se do caráter amplo e subjetivo identificado pelos juízes. Alguns itens foram considerados repetitivos pelos juízes e estes foram então dispostos e agrupados em uma nova ordem considerando a proximidade dos temas, de forma que dos 66 itens iniciais, restaram 61.
Após todas as etapas do estudo, a versão final se constituiu em um
checklist, intitulado “Instrumento para Subsidiar a Atenção à Saúde do Adolescente”. Optou-se por esse formato por ser de fácil entendimento e manuseio, possibilitando um controle dos itens trabalhados, evitando redundâncias durante as abordagens ao adolescente.
DISCUSSÃO
O instrumento proposto vai ao encontro do preconizado pelas Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens, as quais estão estruturadas em dois grandes eixos: a) fortalecimento da promoção da saúde nas ações para o cuidado integral à saúde de adolescentes e jovens e b) reorientação dos serviços de saúde para favorecer a capacidade de resposta para a atenção integral à saúde de adolescentes e jovens
10.
Assim, a proposição de desenvolver um instrumento voltado ao adolescente, no contexto da APS, pode contribuir para o desenvolvimento de uma atenção integral, no sentido de que esta última pressupõe a organização de serviços e a execução de práticas de saúde que integrem um conjunto de estratégias para a prevenção de agravos, promoção da saúde e para as ações curativas e de reabilitação
11.
Destaca-se que a busca de referenciais teórico-metodológicos que fundamentem o cuidado de enfermagem com adolescentes ainda é recente e, embora já se possa dispor de conhecimentos e práticas importantes, faz-se necessário aprofundamentos, discussão e divulgação ampliada, para a capacitação de trabalhadores, nos mais diversos contextos assistenciais ou campos de trabalho
12.
Em uma revisão de literatura, aponta-se a incipiência quanto à produção de instrumentos sem fim psicométrico, no contexto da saúde do adolescente
5. Assim, relativiza-se que a intencionalidade na elaboração de um instrumento deve ser entendida como recurso orientador para a atenção à saúde do adolescente, não se constituindo, portanto, em mecanismo de controle ou engessamento de possibilidades de inovação do cuidado.
Instrumentos utilizados na saúde podem trazer uma contribuição importante para a prestação do cuidado, uma vez que concorrem para a padronização de procedimentos. No entanto, esta padronização pode colaborar para uma atenção pouco singular, de forma que os profissionais de saúde devem estar sensíveis a esta peculiaridade.
No contexto da APS, chama atenção o número relativamente grande de instrumentos utilizados a fim de sistematizar a atenção e imprimir agilidade ao processo de trabalho, no entanto, poucos são os instrumentos que tenham sido produzidos sob percursos metodológicos válidos, assentados no método científico
13. Assim, a produção de instrumentos que subsidiem uma melhor atenção à saúde deve seguir percurso metodológico bem definido, rompendo com o empirismo que parece marcar esta produção.
No julgamento do processo de validação, é comum a utilização de abordagens qualitativas
14,15, sobretudo para o desenvolvimento de instrumentos sem finalidade psicométrica, podendo contribuir para isso o fato de que não se tem metodologias bem delineadas para a construção deste tipo de material, como álbuns seriados, folhetos explicativos, materiais educativos e cartilhas, em comparação a referenciais metodológicos existentes para a construção de escalas, por exemplo, representando uma lacuna do conhecimento.
As ações voltadas à saúde do adolescente podem se beneficiar do desenvolvimento de instrumentos normalizados adequadamente
16. Assim, a utilização do instrumento proposto apresenta um potencial para contribuir com a atenção voltada a este público. Contudo, se reconhece que a incorporação de uma nova tecnologia exige uma reorganização dos serviços, bem como sensibilização e qualificação dos profissionais, em busca da criação de um contexto favorável não somente para sua aplicação, mas também para implementação de outras tecnologias destinadas ao adolescente.
Neste sentido, a estruturação de um instrumento que vise orientar e sistematizar um processo de cuidar do adolescente com vistas a sua Atenção Integral no contexto da APS, tem um caráter de ineditismo e revela um potencial para a prática, uma vez que as intervenções de promoção da saúde têm se mostrado eficazes para modificar o comportamento da saúde dos adolescentes
17.
A participação em intervenções adaptadas para adolescentes pode constituir-se em experiência positivas, proporcionando-lhes conhecimentos, competências e apoio emocional
18.
Assim, o instrumento desenvolvido emerge dessa necessidade de adaptação dos serviços de saúde a práticas consonantes com a atenção integral à saúde do adolescente.
O instrumento em questão guarda uma perspectiva multiprofissional, devendo ser manuseado por todos os profissionais que compõem a equipe da APS no intuito de que todos os itens sejam abordados durante os atendimentos destes adolescentes. O instrumento desenvolvido vai ao encontro das atuais discussões sobre a promoção da saúde do adolescente, uma vez que essas incluem o tema da melhoria do bem-estar biopsicossocial, por exemplo, através do reforço regular de exercícios, nutrição, dimensão espiritual e relacionamento interpessoal
19,20.
Para sua operacionalização, este deve ser anexado ao prontuário, de forma que todos os profissionais tenham acesso. O instrumento deve ser utilizado quando houver a oportunidade de contato com o adolescente, seja em consulta agendada ou demanda espontânea, e independentemente da queixa, para que não se percam oportunidades de intervenção. A escolha de qual item abordar será realizada por cada profissional, de acordo com sua formação profissional e vivência, de forma que as entradas no serviço possibilitem, além da resolução da queixa principal, também um acompanhamento de seu desenvolvimento.
Ratifica-se que, embora o instrumento possa ser utilizado aproveitando-se das entradas nos serviços por diferentes motivos, também é significativo que, a depender da necessidade, sejam agendadas consultas específicas para a avaliação da saúde destes adolescentes.
CONCLUSÃO
Os resultados alcançados neste estudo, através da validação aparente e de conteúdo do instrumento pelo grupo de juízes, mostraram nível satisfatório de validação. O
chekclist foi construído levando-se em consideração material científico, a vivência dos autores e percepções de adolescente, pais, professores e profissionais da ESF, imprimindo um caráter integral ao construto.
A versão
on-line do instrumento está disponível no acervo da Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (RENASF). Destaca-se ainda os esforços feitos para a que o instrumento seja utilizado em serviços que prestem cuidado ao adolescente, como Centros de Saúde da Família, serviços ambulatoriais ou mesmo durante visitas domiciliarias.
Como limitação, é significativo registrar que não foram ouvidos participantes vinculados a escolas privadas. Acredita-se que tais discursos possam trazer contribuições ao construto.
NOTA
Este estudo é produto da Dissertação de Mestrado “Atenção à Saúde do Adolescente na Estratégia Saúde da Família: desenvolvimento de um instrumento para subsidiar uma prática” – do Mestrado Profissional em Saúde da Família da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), em associação com a Rede Nordeste de Formação em Saúde da Família (RENASF) e Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).