INTRODUÇÃO
Submeter crianças e adolescentes a situação de violência sexual rompe com as regras sociofamiliares de responsabilização dos adultos para com os indivíduos em formação e desenvolvimento, transgredindo direitos e atentando gravemente contra a dignidade do outro
1. Na realidade brasileira, os últimos dados oficiais disponibilizados pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos mostram que no ano de 2015 foram realizadas mais de 80 mil denúncias de violação dos direitos da criança e do adolescente, sendo que destas, mais de 25% correspondem ao crime de violação sexual
2.
Diante da problemática da violência sexual perpetrada contra crianças e adolescentes, importantes medidas foram tomadas, a exemplo da lei 8.069 de 13 de julho de 1990 que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu artigo 5º afirma que: “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”
3.
As formas de violência contra crianças e adolescentes, incluem violência física, psicológica e sexual. Esta última, objeto deste estudo, divide-se em abuso sexual intrafamiliar, abuso sexual extrafamiliar e exploração sexual comercial
1,4.
Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a violência sexual como um dos maiores problemas de saúde pública do mundo, visto que causa dano físico, psicológico e social
5. Diversos estudos internacionais indicam o membro familiar como sendo o principal agressor sexual de crianças e adolescentes. Todavia, observam-se diversas situações de violência sexual envolvendo adolescentes, inclusive nos relacionamentos afetivo-sexuais
6.
Este estudo objetiva descrever a prevalência e os principais perpetradores de violência sexual contra adolescentes escolares brasileiros.
METODOLOGIA
O presente estudo é uma pesquisa descritiva que foi realizada a partir dos microdados de um estudo transversal, desenvolvido pelo Ministério da Saúde do Brasil e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, intitulado “Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar” (PeNSE) no ano 2015
7. Os dados foram colhidos no sítio eletrônico do IBGE e encontram-se sob domínio público
7.
A PeNSE 2015 adquiriu inovações após as edições de 2009 e 2012. Uma das principais foi a disponibilização de dois planos amostrais, um com escolares que estão frequentando o 9º ano do ensino fundamental em escolas públicas e privadas do Brasil e o segundo plano amostral abrangendo escolares de 13 a 17 anos de idade do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e do ensino médio
7. Neste estudo foram utilizados dados disponibilizados do plano amostral 1. A amostra 1 da PeNSE 2015 foi representativa da população brasileira, contemplou os26 municípios das capitais e o Distrito Federal, as 26 Unidades da Federação (UF), as cinco grandes regiões e o Brasil (n=102.072), totalizando 53 estratos geográficos
7.
Uma amostra de escolas de cada estrato foi dimensionada e selecionada em cada estrato geográfico. Na sequência, realizou-se a seleção de uma amostra de turmas em cada escola, seguida de convite aos alunos para participação no estudo. Assim, obteve-se uma amostra independente em cada estrato formado. Foram criados os estratos de alocação nos estratos geográficos, onde as escolas foram identificadas de acordo com o cruzamento dos estratos geográficos, a dependência administrativa (pública ou privada) e o tamanho das escolas de acordo com o número de turmas cadastradas do 9º ano do ensino fundamental. Para os estratos dos munícipios das capitais e do Distrito Federal selecionaram-se as escolas nos estratos de alocação de maneira proporcional ao tamanho das escolas segundo o número de turmas
7.
As respostas foram obtidas por meio de um questionário autoaplicável, com mais de 120 questões, inserido nos
smartphones dos participantes da pesquisa. Na versão 2015 do questionário houve acréscimo de questões e exclusão de outras, além da permissão da possibilidade de “saltar” a questão, na perspectiva de reduzir seu tempo de aplicação e minimizando respostas inconsistentes. A metodologia detalhada da PeNSE está descrita em publicação específica
7.
Para este artigo, analisou-se a violência sexual envolvendo adolescentes escolares por meio das seguintes perguntas contidas no item “SEGURANÇA” do questionário:
“Alguma vez na vida você foi forçado(a) a ter relação sexual”? (sim/não);
“Quem forçou você a ter relação sexual”? (namorado(a)/ex-namorado(a); amigo(a); pai/ mãe/padrasto/madrasta; outros familiares; desconhecido; outros.
Estimou-se a prevalência de violência sexual com intervalo de confiança de 95% (IC) segundo o sexo (feminino ou masculino) e dependência administrativa (pública ou privada) por grande região e UF, e a prevalência de violência sexual de acordo com o agressor por grande região do país. Os dados foram analisados no software estatístico
Statistical Package for the Social Sciences, SPSS, versão 20.0 utilizando procedimentos do Módulo de Amostras Complexas, adequado para analisar dados obtidos por plano amostral complexo.
A PeNSE 2015 foi aprovada na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – Conep, do Conselho Nacional de Saúde, por meio do Parecer nº 1.006.467, de 30.03.2015. Por se tratar de dados secundários disponibilizados em domínio público no site do IBGE e não permitir identificação dos participantes da pesquisa, o estudo atende a resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde e não requer apreciação e aprovação de Comitê de Ética.
RESULTADOS
Dentre os estudantes entrevistados 48,3% eram do sexo masculino e 51,7% do sexo feminino. No que se refere à idade, aproximadamente 87,4% dos adolescentes estavam na faixa etária dos 11 aos 15 anos e 12,1% dos entrevistados possuíam idade igual ou superior a 16 anos. Em relação à dependência administrativa, 79,5% dos estudantes eram de escolas públicas e 20,5% de escolas particulares.
Na tabela 1, os resultados mostraram que 4,0% (IC: 3,8-4,3) dos adolescentes escolares brasileiros foram forçados a ter relação sexual alguma vez na vida, sendo mais prevalente no sexo feminino (4,3%; IC: 4,0-4,7), e entre estudantes da rede pública (4,4%) (IC: 4,1-4,7). Tem-se ainda que a região Norte do país apresentou prevalência mais elevada de relação sexual forçada (5,3%; IC: 4,8-5,9), com prevalência significativamente maior no sexo feminino (6,3%; IC: 5,6 -7,1) em relação ao sexo masculino (4,3%; IC: 3,6-5,0).

De maneira geral, a prevalência de violência por relação sexual forçada foi menor na rede privada de ensino. A tabela 1 mostra que diferenças significativas de vitimização por relação sexual forçada foram observadas entre escolas públicas e privadas nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul. Na região Nordeste, por exemplo, na rede pública a prevalência foi de 4,2% (IC: 3,8-4,6), enquanto que na rede privada a prevalência foi de 2,5% (IC: 2,1-2,9).
Na figura 1 são apresentadas as prevalências de escolares que sofreram relação sexual forçadas por unidades da federação. As maiores prevalências foram observadas nos estados de Roraima (7,3%; IC:95% 6,4-8,2), Mato Grosso (6,2%; IC: 5,0-7,4), Amazonas (6,2%; IC: 5,2-7,2), Maranhão (5,7%; IC: 4,7-6,6), Tocantins (5,3%; IC: 4,4-6,2), Amapá (5,1%; IC: 4,5-5,8), Pará (4,9%; IC: 3,9-6,0), Rondônia (4,8%; IC: 4,1-5,6), Ceará (4,5%; IC: 3,6-5,4) e Acre (4,5%; IC: 3,6-5,5). Nota-se que entre os dez estados com maiores prevalências, sete deles compõem a Região Norte do país, mesma região onde este tipo de violência foi mais prevalente (Tabela 1). A menor prevalência do Brasil foi observada no estado de Alagoas (2,8%; IC: 2,2-3,4).
Figura 1. Prevalência (%) e respectivos intervalos de confiança de 95% de escolares do 9º ano do ensino fundamental que foram forçados a ter relação sexual alguma vez na vida, segundo as Unidades da Federação, 2015.
Sobre o autor da violência, observa-se que houve maior prevalência nos relacionamentos afetivos-amorosos, onde o namorado(a)/ex-namorado(a) foi identificado como principal autor da violência sexual entre os escolares brasileiros (26,6%; IC: 24,3-28,9), seguido por amigos (21,9% IC: 19,4-24,1) e outros familiares (19,7%; IC: 17,5-21,9). O agressor menos prevalente nas respostas dos estudantes brasileiros avaliados foram o pai/mãe/padrasto/madrasta, com prevalência de 11,9% (IC: 10,2- 13,6). Evidenciou-se diferença estatisticamente significativa (p<0,05) entre a prevalência de violência sexual perpetrada por namorado(a)/ ex-namorado(a) ou por amigos em relação à violência perpetrada pelo pai/mãe/padrasto/madrasta.
A região Centro-Oeste registrou a maior prevalência de violência perpetrada por namorado(a)/ex-namorado(a) (31,7%; IC: 27,5-35,8) e por pai/mãe/padrasto/madrasta (15,3%; IC: 12,0-18,5). Quando o agressor é um amigo(a), a maior prevalência foi aferida no Nordeste (24,8%; IC: 21,4-28,2). A região Sul registrou a maior prevalência para outros familiares (22,9%; IC: 17,5-28,4) e pessoas desconhecidas (16,2%; IC: 11,4-21,1) (Tabela 2).

DISCUSSÃO
A PeNSE 2015 evidenciou que a violência por relação sexual forçada foi mais prevalente no sexo feminino, na região Norte do país e entre estudantes de escolas públicas.
Compreendida como um fenômeno complexo e de distribuição não homogênea no mundo, a violência, de maneira geral, é um grave problema social e de saúde pública. Sobre este fenômeno recaem a influência de fatores econômicos, sociais, políticos e culturais em que mais de 95% dos atos de violência praticados contra crianças e adolescentes acontecem em países com os menores indicadores de desenvolvimento econômico e social
8.
A violência é um fenômeno que se materializa nas relações constituídas de forma desigual, estando as vítimas frequentemente em situação de desvantagem social e/ou física, com maior incidência em classes populares, moradores de periferias urbanas e regiões de baixo desenvolvimento socioeconômico
9.
Situações de violência perpetradas contra crianças e adolescentes atentam contra as regras sociais de responsabilização dos adultos pelos menores e contraria o que se preconiza no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Estima-se que a cada hora sejam registradas cinco denúncias de violência contra crianças e adolescentes no Brasil através do serviço telefônico Dique 100, e este número pode ser ainda maior ao considerar o fato de muitos casos permanecerem em segredo
10.
Estudos americanos com estudantes adolescentes indicam que 18% das meninas e 12% dos meninos já tiveram uma experiência de violência sexual
11. De acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, do departamento de Saúde dos Estados Unidos, estima-se que uma em cada quatro garotas e um em cada seis garotos já sofreram uma experiência de violência sexual perpetrada por um adulto ou adolescente mais velho
12.
Neste estudo, as maiores prevalências de vitimização por violência sexual foram observadas no sexo feminino. De maneira geral os estudos sobre a temática da violência sexual contra adolescentes, relatam maior prevalência no sexo feminino, porém enfatizam a subnotificação existente nos sistemas de informação do país, onde a violência contra meninos é frequentemente negligenciada
13. Soma-se a isso, o fato de que a construção de nossa sociedade se baseia numa cultura machista com padrões de masculinidade em que homens e meninos são indivíduos dotados de força, e por essa razão invulneráveis, incompatível com a posição de vítima, e por isso, frequentemente não revelam as experiências de violência sexual
14.
A OMS destaca que a violência contra meninos é um problema significativo, com prevalência observada em países desenvolvidos entre 5 e 10% e em países em desenvolvimento são observadas prevalências variando de 3,6 a 20%
15, corroborando com os achados deste estudo onde foram observadas prevalência de 3,7 (IC: 3,3-4,1).
Apesar deste estudo não ter verificado a relação entre variáveis socioeconômicas e a vivência de violência por relação sexual forçada, considera-se importante destacar que a região Norte, onde foram observadas as maiores prevalências, é uma das regiões do país com os menores indicadores econômicos e sociais, com as maiores taxas de desemprego, menor faixa de renda, maiores taxas de analfabetismo, dentre outros indicadores constantemente relatados na literatura como fatores relacionados com a maior possibilidade de vitimização por violências
16.
A região Norte representa quase metade de todo território nacional, o que se torna um grande desafio para o desenvolvimento de políticas públicas. A esse fato somam-se as dificuldades de acesso aos seus estados – com várias cidades isoladas, a escassez de informações e dados sobre as condições de vida das crianças e adolescentes, especialmente das comunidades rurais
10. Tais fatores permitem inferir que os números deste tipo de violência na região podem ser muito maiores que os números verificados neste estudo.
Pesquisas indicam que indivíduos com maior exposição a eventos violentos na comunidade, são mais propensos a sofrerem violência
16. Nesta perspectiva, tem-se que dentre os dez estados onde foram verificadas as maiores prevalências de violência sexual, quatro deles estão entre os dez estados com as maiores taxas de homicídio do país, segundo o Atlas da Violência 2017. Desses, três pertencem à Região Norte, onde a violência por relação sexual forçada foi mais relatada, inclusive o estado de Roraima apresentou a maior prevalência
17.
A elevada prevalência observada nos escolares da rede pública de ensino, justifica-se pelo fato de a maior parte deles pertencerem às classes socioeconômicas mais baixas e, assim serem mais vulneráveis a exposição a eventos violentos.
Ao analisar a vivência de relação sexual forçada segundo autor da agressão, a PeNSE 2015 evidenciou que na maioria dos casos, o agressor é conhecido da vítima e frequentemente alguém com quem a mesma mantém algum tipo de relacionamento, com maior prevalência relatada para o namorado(a)/ex-namorado(a) e amigo(a). Violências nas esferas relacionais dos adolescentes e jovens tem chamado a atenção da comunidade científica pela alta prevalência deste fenômeno no mundo. Na fase da adolescência vivenciam-se as primeiras experiências amorosas e sexuais, sendo então etapa de alta vulnerabilidade para relacionamentos violentos
18.
Estima-se que de 2/3 a 3/4 de todas as experiências de violência sexual contra adolescentes são perpetradas por um familiar ou conhecido da vítima, potencializando os danos causados. A violência sexual perpetrada contra crianças e adolescentes impacta de diversas maneiras a vida das vítimas, com danos físicos, psicológicos, emocionais e sociais, dentre eles o medo, a fobia social, depressão, ideação suicida, abuso de álcool e outras drogas, infecções sexualmente transmissíveis e gravidez
8,11.
Dados de um estudo multicêntrico nacional com adolescentes escolares das redes pública e privada de ensino evidenciou que 10,1% dos escolares avaliados já sofreram violência sexual em ao menos uma esfera relacional. Neste estudo, a maior prevalência de violência também foi verificada nos relacionamentos afetivos-amorosos, sendo o parceiro das vítimas apontado como principal agressor
6.
Outro estudo realizado com adolescentes e jovens de capitais brasileiras mostrou que o parceiro ou ex-parceiro amoroso foi o principal agente da coerção (53,6%) para as meninas, seguido de amigo (18,1%). Para os rapazes, o principal agente foi o amigo (44,5%), seguido de parceiro ou ex-parceiro (33,3%)
19.
Apesar de não ter sido verificado como principal agressor neste estudo, é importante refletir sobre a violência sexual cometida pelos pais e/ou pessoas que ocupam esta posição, uma vez que tal prática é cercada de mitos e tabus. A família é considerada um espaço seguro, de carinho e proteção, onde estes familiares incapazes de praticar qualquer ato violento contra os seus, sobretudo a violação sexual. No entanto, estes casos ocorrem e frequentemente impera o segredo na violência praticada pelos pais ou responsáveis, o que pode explicar a menor prevalência verificada em relação a outros agressores neste estudo
10,13.
Os dados apresentados mostraram que os adolescentes escolares estão expostos a situações de violência sexual. A PeNSE constitui-se de uma ampla pesquisa, porém pode não corresponder à realidade encontrada em todo o país, sobretudo nas cidades do interior, além da amostra analisada neste estudo ser apenas do 9º ano do ensino fundamental, o que não inclui adolescentes que estão em outras séries de ensino.
CONCLUSÃO
A crescente manifestação da violência no país atinge significativamente os adolescentes e jovens. A violência por relação sexual forçada é um grave problema social e de saúde pública, apresentando taxas significativas entre os escolares brasileiros, apesar da negligência e da potencial subnotificação.
A experiência de relação sexual forçada analisada pela PeNSE, foi mais prevalente no sexo feminino, entre estudantes da rede pública de ensino e nas regiões com os menores indicadores de desenvolvimento econômico e social, a exemplo da Região Norte onde todos os seus estados apareceram entre os dez estados com as maiores prevalências deste tipo de violência sexual.
Os principais perpetradores da agressão pertenceram a alguma esfera relacional dos adolescentes, com maiores prevalências verificadas nos relacionamentos afetivos-amorosos.
Os achados deste estudo descreveram a prevalência de violência por relação sexual forçada contra adolescentes escolares brasileiros e possibilitaram identificar os principais perpetradores desta violência. Para melhor compreensão deste fenômeno complexo e dinâmico, faz-se necessária a realização de outros estudos que aprofundem esta discussão, relacionando características socioeconômicas dos escolares e dos locais onde habitam, que permitam inferir, por exemplo, sobre os fatores associados à maior prevalência observada em escolares do sexo feminino, da rede pública e de regiões mais pobres do país. Importante destacar a necessidade de compreender a dinâmica do abuso sexual intrafamiliar e nas relações afetivas e amorosas dos adolescentes, uma vez que a prática de relação sexual forçada foi mais prevalente nesta esfera relacional.