Objective: To understand the experiences of adolescents in vulnerable conditions, relating them to possible motivations for dropping out of school. Method: This is an observational, descriptive, cross-sectional study, employing a qualitative approach, conducted in the territory of Governador Valadares, Minas Gerais. The sample consisted of 15 adolescents aged between 13 and 19 years old, treated at the Family Health Strategy and a private psychology clinic. The focus group interview technique was employed to collect data. A theme was established: school and work experiences – dialogue and learning. Bardin’s content analysis was used to interpret the data. Results: They showed that the participating adolescents like being at school to make friends, but dislike the main activity (studying). This fact is due to several factors, which we sought to understand through the reports. We also observed the relationship of adolescents with work and its relationship with dropping out of school. Conclusion: The adolescents in the study showed little appreciation for the activity of studying, but affection for the friendships they made at school. We observed that this displeasure is multifactorial (the relationship of new generations with technology, the inadequacy of the century-old blackboard-teacher-desks model, starting work life, fatigue, repeating grades, age-grade distortion, early pregnancy, embarrassment from peers, little dialogue with the school).
Resumo
Objetivo: Compreender as vivências de adolescentes em condição de vulnerabilidade relacionando-as com possíveis motivações para a evasão escolar. Método: Trata-se de um estudo observacional, descritivo, de corte transversal, que utiliza uma abordagem qualitativa, realizado no território de Governador Valadares, MG. A amostra foi constituída por 15 adolescentes com idades entre 13 e 19 anos, atendidos na Estratégia de Saúde da Família e numa Clínica privada de psicologia. Para a coleta de dados utilizou-se a técnica de entrevista com grupo focal. Foi estabelecida uma temática: Vivências de escola e trabalho – diálogo e aprendizagem. Na interpretação dos dados foi usada a Análise de conteúdo de Bardin. Resultados: Demonstraram que os adolescentes participantes gostam de estar na escola para fazer amizades, mas desgostam da atividade principal (estudar). Esse fato se dá por inúmeros fatores, que procuramos entender pelos relatos. Observou-se também a relação dos adolescentes com o trabalho e sua relação com a evasão escolar. Conclusão: os adolescentes da pesquisa demonstraram pouco apreço pela atividade estudar, mas afeto pelas amizades conseguidas na escola. Observamos que esse desagrado é multifatorial (a relação das novas gerações com a tecnologia, a inadequação do centenário modelo lousa-professor-carteiras, iniciar a vida laboral, cansaço, repetências, distorção idade-séries, gestação precoce, vergonha dos pares, pouco diálogo com a escola).
As adolescências, no plural, é uma expressão usada por vários pesquisadores [1, 2]. O significado dessa expressão está relacionado aos adolescentes e ao grupo social a que pertencem. Apesar de estarem na mesma faixa etária e no mesmo estágio de desenvolvimento, podem apresentar vivências diferentes.
Adolescência é um termo amplo, que supera a questão temporal (a passagem entre a infância e a vida adulta) e a questão biológica (as modificações do corpo, a puberdade). Stevens [3] considera que a adolescência é um sintoma da puberdade. Ou seja, consideramos que as alterações psicossociais que advêm das transformações biológicas da puberdade, são a adolescência.
As adolescências do século XXI convivem com avanços tecnológicos (smartphones, internet, etc.) que impactam sua relação com os professores e a própria escola, além de não termos eliminado os problemas crônicos de nossas escolas como bullying, violência, por exemplo.
As adolescências brasileiras sofrem com situações que as levam a maior vulnerabilidade. O documento Cenário da Infância e Adolescência no Brasil da Fundação ABRINQ [4] nos traz duas situações que podem nos mostrar a magnitude da crise da educação para nossas adolescências. O primeiro dado é que, no ensino médio, entre os anos 2020 e 2021, houve um crescimento do abandono escolar da ordem de 117,3%, esse dado é bastante insatisfatório, já que o ensino médio corresponde à faixa etária dos 15 aos 18 anos, essa realidade provavelmente vai impactar o futuro desses estudantes, do ponto de vista da colocação no mercado de trabalho e remuneração. O segundo dado do mesmo documento é que, entre 2019 e 2021, na faixa etária de 14 a 19 anos, ocorreu a projeção de mais de um milhão e meio de adolescentes realizando atividade laboral.
Esse artigo pretende compreender as vivências de adolescentes em condição de vulnerabilidade, relacionando-as com possíveis motivações para evasão escolar.
Trata-se de um estudo observacional, descritivo, de corte transversal, utilizando uma abordagem qualitativa. Foi realizado na cidade de Governador Valadares, Minas Gerais, em dois ambientes: A Estratégia de Saúde da Família (ESF) Santa Rita 1 e a Clínica de Psicologia Laços.
Nos dois grupos tínhamos representantes dos recortes sociais estudados: adolescentes do sexo feminino, LGBTQIAP+, negros e obesos. Para delimitar a faixa etária da adolescência: 13-19 anos, utilizou-se os critérios da Organização Mundial da Saúde [5]. A faixa etária de 10 a 19 anos foi escolhida devido às mudanças físicas e biológicas que mantêm o adolescente em crescimento até essa idade; está relacionado a fatores genéticos, ambientais, psicológicos e também à saúde do indivíduo; nas meninas há uma mudança primordial nesse período, é a primeira menstruação, conhecida como menarca. Bem como, por serem indivíduos que se encontram numa fase de desenvolvimento da autonomia, construção de identidade e reivindicar por liberdade de expressão e de sentimentos.
Foram incluídos indivíduos entre 13 e 19 anos, de ambos os sexos, atendidos nos serviços da ESF Santa Rita e na Clínica Laços, que residem na zona urbana de Governador Valadares, possuem capacidade cognitiva preservada e capazes de responder aos instrumentos utilizados na coleta de dados da pesquisa.
Para realização desta pesquisa foram respeitadas as normas éticas estabelecidas pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 do Conselho Nacional de Saúde e Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde – Ciências Humanas e Sociais [6, 7]. Este projeto foi submetido à Plataforma Brasil, posteriormente encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa.
Foi utilizado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que todos participantes tivessem as informações necessárias com relação à pesquisa. Todos participantes no momento da coleta de informações assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE. Esse termo foi assinado em duas vias: uma via ficou com o pesquisador e outra com o participante ou responsável.
Para a efetivação da coleta dos dados, inicialmente, foi realizado um contato com as coordenações da ESF Santa Rita I e da Clínica Laços detalhando os objetivos e a metodologia utilizada no desenvolvimento do estudo. Na oportunidade, foi solicitada autorização de ambos os locais para realização da pesquisa e utilização de dados arquivados no sistema operacional. Em seguida, a partir de informações disponibilizadas pelos responsáveis foram identificados os participantes da pesquisa.
Após identificação dos possíveis participantes, foi realizado contato telefônico para apresentação dos objetivos, metodologia da pesquisa, os procedimentos aos quais seriam submetidos e convite para participação. Posteriormente, foi agendado um encontro (dia, horário e local) para realização da coleta de dados de acordo com a conveniência e disponibilidade dos participantes. Antes de realizar a entrevista, foi explicado que a pesquisa possui caráter voluntário e que todos participantes necessitarão assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assegurando o caráter confidencial de suas respostas, seu direito de não identificação.
Para coleta dos dados foi utilizada a técnica de entrevista com grupo focal, que se constitui em uma técnica em pesquisas qualitativas. Possui o propósito de coletar informações por meio das interações grupais e proporcionar aos participantes serem sujeitos ativos de pesquisas. O Grupo Focal foi constituído por 15 adolescentes (oito na ESF e sete na Clínica), na faixa etária entre 13 e 19 anos, um moderador e um observador.
A apuração dos dados foi realizada segundo a técnica da “Análise de Conteúdo” [8], em que se busca a essência das similaridades de frases escritas ou faladas pelos participantes. A análise de conteúdo é um método que busca compreender a realidade, por meio de palavras-chave extraídas da interpretação de textos ou discursos vinculados com o posicionamento dos sujeitos.
A fim de não revelar a identidade dos sujeitos envolvidos na pesquisa, utilizou-se nomes de personagens de desenhos animados, livros ou séries para distingui-los. Solicitou aos adolescentes que escolhessem nomes dos personagens com que gostariam de aparecer no texto. A identificação através do nome de personagens de ficção teve como objetivo maior aproximação com o objeto de estudo. Além da possibilidade de oferecer maior protagonismo possível dentro do estudo pretendido. Foram omitidos os trechos das entrevistas com falas particulares que permitam a identificação do sujeito.
Inicialmente, serão apresentados os dados sociodemográficos (Tabela 1) fornecendo informações que irão contribuir para a compreensão e interpretação dos resultados a partir do contexto em que o estudo foi realizado. Além de proporcionar o planejamento de políticas públicas e ações sociais, pois, o conhecimento das características da população permite direcionar intervenções de forma mais eficaz e adequada às demandas específicas de cada grupo.
Características | Nº de Participantes | |
---|---|---|
Identidade de Gênero | Mulher Cis | 11 |
Homem Cis | 03 | |
Homem Trans | 01 | |
Idades | 13 anos | 01 |
14 anos | 03 | |
15 anos | 01 | |
16 anos | 05 | |
17 anos | – | |
18 anos | 03 | |
19 anos | 02 | |
Nível de Escolaridade | Nível Fundamental | 04 |
Nível Médio | 07 | |
Cursinho | 02 | |
Nível Superior | 01 | |
Não frequenta a escola | 01 | |
Reside | Família | 14 |
Sozinho | 01 | |
Ocupação | Construção Civil | 01 |
Vendas na Internet | 01 | |
Estudante | 14 | |
Fonte: Dados da pesquisa, 2024 |
Nesse artigo abordamos a rotina diária dos adolescentes na escola e em alguma atividade laboral, seja formal ou informal (ajudando a família ou trabalhando na informalidade). Está relacionada às percepções em relação à escola e trabalho, a sentimentos de pertencimentos e onde estão localizados seus interesses. A dimensão do trabalho juntamente à escola e à família pode ser considerada como um dos condicionantes da inserção no mundo adulto para os adolescentes, especialmente para aqueles que necessitam trabalhar.
Segundo Godoy e Oliveira-Monteiro [9], os valores humanos são adquiridos e se formam como resultado da realidade em que cada sujeito vive. Portanto, a escola e a família possuem influência preponderantes na aquisição dos valores por parte de crianças e adolescentes e, à medida que ensinam normas e padrões, expressam o conjunto de valores da sociedade, reproduzindo os valores de gerações atuais e passadas.
As adolescências vivem numa época de inúmeros estímulos: internet, videogames, inteligência artificial, videoconferências, etc. E, em sua maioria, frequentam escolas que continuam seguindo um modelo muito antigo: sala de aula apinhada de alunos, em carteiras desconfortáveis, um professor solitário com um giz na mão e uma lousa à sua frente. A incompatibilidade de interesses é visível.
Essa incompatibilidade só tem aumentado, porque, cada vez mais, professores se queixam do fato de ter que disputar a atenção de seus alunos com aparelhos celulares. Lima, Lisita e Kelles [10] relatam que as escolas “têm, cada vez mais, se deparado com impasses relativos ao uso que os adolescentes fazem do espaço virtual, que é muitas vezes excessivo e até mesmo transgressor”. Lipovetsky [11] considera que a contemporaneidade é uma época em que a sociedade liberal está centrada no enfraquecimento dos grandes determinantes dos sentidos, no culto ao corpo e na perseguição da satisfação imediata. Esse imediatismo e hedonismo só acentuam a confusão entre as adolescências, divididas entre o prazer imediato (e insatisfatório) dos celulares e a lentidão do sistema educacional, que demanda esforço e tempo para sua progressão.
Os relatos dos adolescentes participantes da pesquisa indicam que a escola é considerada um lugar que não proporciona afetos positivos, mas sim exigências e o cumprimento de normas:
“Eu gosto, mas eu não sei se eu diria que é um local que me faz feliz… É um local que a gente faz rede social… que faz amigos… ao mesmo tempo, um ambiente que gera a possibilidade de falha… de cobrança e de muita ansiedade!” Perseus, 19 anos, Clínica Laços.
“O que era né? Quando eu tava na escola, eu odiava… era muito pesado! Eu estudava no IEF… hoje, no cursinho, não é tão pesado! Não era tão ruim…, mas eu não voltaria!” Sasha, 18 anos, Clínica Laços.
Ambos os relatos relativizaram o gostar, principalmente porque a escola pode representar uma fonte de stress (cobrança, falha) ou pelo fato de o Instituto Federal ter uma rotina mais intensa. Foi possível também perceber que gostam de frequentar a escola, pois trata-se, principalmente, de lugar para o estabelecimento de relações sociais. Entretanto, sentem-se desmotivados, pois se percebem numa escola controladora.
Pode-se, portanto, relacionar o ambiente escolar a um território juvenil materializado nos corpos jovens e com desejos representando a subjetividade. Além de indicar pertencimentos e elementos de um certo modo de ser, de uma trajetória na escola. Para Moraes [12], o território pode ser entendido como materialidade, e a configuração territorial como o uso social e historicamente definido desse âmbito espacial (seu papel como recurso, condição e base, para a vida humana).
Na perspectiva de Caetano et al. [13], as várias configurações de estar na escola compõem o dia a dia e as relações entre os indivíduos. Em alguns momentos com mais horizontalidade, em outros com mais hierarquia nas disputas de poder que surgem a partir das posições exercidas no território, expressando pertencimentos. A participação ou não nas atividades cotidianas propostas na sala de aula e em outros espaços da escola e o modo como ocorre essa participação fornecem elementos da disputa.
Podem-se observar em algumas falas os sentidos que a escola tem para os adolescentes. Gostam da convivência social que a escola proporciona, mas se queixam da estrutura acadêmica:
“Eu só vou obrigada! Só vou pra conversar, pra estudar, não! Se eu pudesse, eu ficaria no quarto, ou iria pra casa da Bia, como eu faço todos os dias!” Ana Beatriz, 13 anos, ESF.
“Para mim, é um lugar bom, onde eu tenho amigos… já estudar, eu não!” Bia, 15 anos, ESF.
Entender o sentido que a escola ocupa na vida dos jovens significa a compreensão da sua inserção em uma instituição, inclusos e pertencentes a uma sociedade. Com isso, pode-se considerar suas críticas fundamentadas e interpretá-las de maneira que possa contribuir para a melhoria das escolas e da educação.
A educação, no entendimento de Pereira e Lopes [14], está conectada às transformações sociais, culturais, históricas, econômicas e políticas de um país. Apresenta-se inserida em um sistema com uma estrutura social estabelecida por interconexões e interferências que influenciam os processos educacionais desses jovens, os sentidos e significados atribuídos à escola por eles.
O participante Scott abandonou a escola, mas acanhado, não quis contar os motivos. No entanto, outros participantes relataram experiências negativas na escola:
“Era horrível! Eu sofria bullying e ameaça de apanhar! Fora que eu também sofria transfobia na escola.” Alex, 19 anos, Clínica Laços.
“Tipo assim: não é ruim, mas também não é muito boa! É bom porque eu fiz muitas amizades e consigo interagir com as pessoas…, mas ruim são as pessoas… alguns professores… até demitiram um no ano passado… sabe, lidar com as pessoas é muito complicado… depende do humor da pessoa… e acordar cedo é uma bosta.” Penélope, Clínica Laços.
Estes relatos provavelmente estão relacionados às dificuldades e medos vivenciados no ambiente escolar, ou seja, no espaço-lugar, a escola. Possivelmente, o aprendizado é sistemático, apostilado, com uma perspectiva de um currículo com conteúdos obrigatórios, com carga horária preestabelecida para todos e, muitas vezes, desconsiderando a realidade dos jovens estudantes.
Os adolescentes participantes da pesquisa apresentaram um cotidiano tenso no ambiente escolar. Há uma transformação da escola em espaços desagradáveis, com relações pessoais negativas, propiciando um ambiente desmotivador, sem interação e troca. O contexto escolar não é homogêneo, e sim dinâmico. O cotidiano forma a cultura escolar, sendo dependente dos sujeitos que a compõem, com seus objetivos e valores, indo de encontro com os interesses daqueles que elaboram os currículos. Há que se questionar como a escola interage com esses acontecimentos.
A escola é considerada uma instituição que deve buscar compreender como o sujeito apreende o mundo e, com isso, como se constrói e transforma a si próprio: um sujeito indissociavelmente humano, social e singular [15]. Essas reflexões nos levam a crer que as escolas deveriam ser espaços que oportunizam saberes e aproximam os sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
Para Saito e Fabrício [16], é preocupante o fato de a maioria das instituições de ensino estabelecer um Projeto Político-Pedagógico (PPP) que responda às necessidades de um “aluno padrão”, não considerando as diferenças. O Currículo oficial é o elaborado pelo Estado, e não contempla apenas os métodos, conteúdos e avaliações, mas sim as práticas e os valores de interesse dos grupos sociais, sendo organizados a partir dos seus interesses, efetivando as ideologias no ambiente escolar.
O funcionamento do espaço escolar, de acordo com Muller [17], pode ser comparado a um relógio, ou seja, como um dispositivo mecânico com toda a precisão, aplicado a seres vivos num espaço fechado e reduzido, com organização das pessoas e objetos na sala de aula. No entanto, considera que os espaços-lugares fazem sentido para as crianças e adolescentes porque estão atrelados às suas relações sociais, pautadas pelas amizades, lutas por poder, negociações, trocas inter e intrageracionais.
As práticas espaciais estabelecidas nos territórios-escola se fazem na ação humana a partir das relações sociais e culturais e, por isso, se tornam potencialmente educativos, por neles circularem saberes, práticas, memórias, modos de vida e relações de alteridade, nas quais se podem apreender modos de ser e viver, justos, éticos e cidadãos. Nesses territórios os alunos podem se integrar ou não, pois o território escolar não é apenas o espaço físico, mas também ideológico [18]. Percebeu-se pelas respostas que a escola, para os adolescentes participantes, está distante desse território de aprendizado descrito pelos autores.
Os indivíduos, segundo De Souza e Lourenço [18], imprimem suas marcas nos territórios em que vivem (o quarto, a casa, a escola…), pelo uso que deles fazem e pelo modo como deles se apropriam. Nesse sentido, o aprender, na escola, guarda uma marca com as vivências de cada aluno e, dessas vivências, vão se cristalizando em boas e más memórias do tempo de escola.
Na perspectiva de Shoen [19], a perda de interesse pela escola é multifatorial. Está relacionada a três modos de engajamento: o comportamental, ou seja, o envolvimento em atividades acadêmicas; o emocional, definido como o sentimento de pertencer à escola e o prazer que o aluno sente com o sucesso em suas atividades; e o engajamento cognitivo, considerado o aprendizado em si. Ressalta que o engajamento à escola é um importante fator de proteção para o envolvimento com atividades de risco (drogas, violência e até mesmo para o abandono escolar).
Os participantes da pesquisa são adolescentes de uma sociedade contemporânea. Fascinados pelos avanços tecnológicos, pelas informações quase sempre superficiais que suas telas lhes dão, impactados pela vivência com a violência e, como adolescentes de qualquer tempo, ocupados com a árdua tarefa de construir suas identidades, com toda insegurança e ansiedade que isso produz. Uns gostam, mas ficam ansiosos com a possibilidade de falhar, outra gostou de passar na escola, mas o cursinho é bem mais leve. O participante que saiu da escola nem gosta de se lembrar do porquê e outros se lembram com dor da vivência de bullying.
Os relatos dos grupos focais mostraram reações, memórias e afetos diferentes, mas os participantes têm em comum essa ambivalência de gostar de estar na escola, para construir sua rede social de apoios e amizades, but desgostar da atividade fim: estudar. Podemos dizer que isso reflete a crise da escola, uma instituição que pouco se renovou (carteiras, professor solitário e uma lousa) para atrair uma geração fascinada com as novas tecnologias.
Em relação ao abandono e à evasão escolar, algumas participantes relataram terem conhecimento de alguém que vivenciou essa situação:
“Meu pai! Ele abandonou a escola quando tava no sexto ano… eu acho que, naquela época, não havia uma educação tão boa… só sei que ele abandonou e foi trabalhar, né?” Edra, 16 anos, ESF.
“Meu pai também! Ele saiu da escola no sétimo… Motivo: mesma coisa que ela disse: Ele saiu pra ajudar meu avô, trabalhar e tudo!” Bia, 15 anos, ESF.
Essas falas revelam uma condição vivenciada por uma geração anterior, ou seja, a necessidade de abandonar os estudos para se inserir no mundo do trabalho. Diversos fatores internos e externos, como drogas, tempo na escola, sucessivas reprovações, falta de incentivo da família e da escola, necessidade de trabalhar, excesso de conteúdo escolar, alcoolismo, localização da escola, vandalismo, falta de formação de valores, podem ser considerados decisivos no momento de permanecer ou sair da escola.
No entanto, dados da evasão escolar apresentados no documento Cenário da Infância e Adolescência no Brasil, da ABRINQ [4], demonstram que esse fenômeno cresce no nosso país. A evasão escolar, na faixa etária que corresponde ao ensino médio (15 a 18 anos), cresceu 117,3% entre 2019 e 2020. Esse crescimento está relacionado com a pandemia e o empobrecimento da população. Portanto, a evasão escolar continua sendo um problema da nossa educação.
A evasão escolar, no entendimento de Oliveira e Ferreira [20], acontece quando o aluno deixa de frequentar as aulas, caracterizando o abandono escolar durante o ano letivo. Ressaltam que a consequência para os alunos é uma grande dificuldade de se colocar no mercado de trabalho, já que sua formação não os habilita a competir por melhores salários; uma maior vulnerabilidade ao assédio do crime organizado; uma maior fragilidade da saúde e uma maior presença nas futuras estatísticas de desemprego.
Para Souza et al. [21], a evasão e abandono escolar é uma situação que está vinculada a muitos obstáculos, considerados, na maioria das vezes, intransponíveis para milhares de jovens que se afastam da escola e não concluem a educação básica. Destacam como principais causas a necessidade de trabalhar para reforçar o orçamento familiar ou o seu próprio sustento, ingresso na criminalidade, convívio familiar conflituoso e má qualidade do ensino. Esses fatores estimulam o jovem a desacreditar na escola e a pensar que o sistema escolar não irá colaborar na formação de valores e ao preparo para o mundo do trabalho.
A evasão escolar é considerada multifatorial e pode ocorrer devido a motivos como pobreza e falta de esperança num futuro melhor, que leva o aluno a trabalhar prematuramente, optando pelo trabalho precoce. Sendo assim, a maioria migra para o estudo noturno, o que facilita a evasão (cansaço do trabalho, desinteresse nas aulas e dificuldades familiares). Dificuldades escolares como TDAH, insuficiência intelectual, etc., e as repetências; gestação precoce; dificuldades de diálogo entre professores e alunos; vergonha dos colegas, alunos com repetências ou com distorção idade-série são alguns dos elementos que podem fazer o adolescente se sentir inferiorizado em relação aos seus colegas e abandonar a escola [22].
A não resposta de Scott, único dos entrevistados que abandonou a escola, mostra que a evasão escolar pode ser considerada um problema crônico e histórico em nosso país e que depende da ação dos poderes públicos, principalmente em relação aos gestores escolares, que precisam assegurar um bom ensino-aprendizagem. Portanto, há necessidade da família, escola, governo e sociedade assumirem que a evasão escolar proporciona um alto custo social e econômico para todos. Caso contrário, continuaremos assistindo histórias de abandono da vida escolar.
Pode-se considerar que, provavelmente, os participantes dessa pesquisa são uma parcela privilegiada da sociedade, pois essa não é a realidade das adolescências em nosso país. O documento Cenário da Infância e Adolescência do Brasil denuncia que, entre 2021 e 2023, haviam 1,5 milhões de adolescentes entre 15 e 17 anos inseridos no mercado de trabalho [4].
Ficou evidenciado que uma participante da pesquisa demonstrou interesse em estudar e trabalhar no programa Jovem Aprendiz. No entanto, alegou que a burocracia é grande e que está esperando para ser chamada “há meses”:
“Estou querendo trabalhar no menor aprendiz, mas está complicado pra entrar.” Edra, 16 anos, ESF.
Esse relato demonstra uma combinação entre escola e trabalho nas trajetórias juvenis, ou seja, uma possível passagem progressiva e lenta em direção à vida adulta. Pode indicar o ingresso precoce de jovens no trabalho, e pelos impactos dessa inserção prematura na vida escolar desses indivíduos.
Durante os últimos anos, poucas políticas públicas foram implantadas para proteger as adolescências na transição entre a vida escolar e o trabalho. Duas leis se destacam. A primeira é a Lei do Jovem Aprendiz (Lei 10.097/2000), que regulamenta a contratação por empresas de jovens aprendizes (14 a 24 anos) com carga horária máxima diária de seis horas ou trinta horas semanais, condicionadas à matrícula regular na escola [23]. A segunda é a lei “Pé de Meia” (14.818 sancionada em janeiro de 2024), que oferece incentivos monetários para matrícula e frequência escolar para adolescentes que frequentem o ensino médio [24]. Essa lei é uma tentativa de minimizar os números crescentes da evasão escolar para entrada precoce no mercado de trabalho.
Ao examinar o entrecruzamento dos percursos desenvolvidos pelos jovens (educacional, laboral, familiar), segundo Abramo, Venturi e Corrochano [25], deve-se aprofundar na perspectiva multidimensional para produzir uma compreensão mais integrada dos problemas vividos por eles. Tanto as pesquisas quanto o debate em torno da construção das políticas públicas dirigidas ao público juvenil contribuem para fortalecer a importância de considerar as situações de atividade (estudar, trabalhar ou procurar emprego, ou a busca de trabalho), especificando as inflexões nos percursos ao longo do período representado pela etapa juvenil, diferenciando as idades em que ocorrem para compreender seus efeitos e significados.
A sobreposição das atividades de estudo e trabalho, na visão de Tommasi e Corrochano [26], pode significar experiências diversas. Suas consequências são distintas, conforme as condições sociais e econômicas das famílias dos jovens, mas também em função da idade e do momento do percurso escolar em que ocorrem: na adolescência durante o ensino básico; após os 18 anos, juntamente com o ensino superior ou ainda no intervalo entre essas etapas de ensino, em paralelo com cursos técnicos ou de preparação para o vestibular.
Poucos adolescentes demonstraram uma participação regular nas tarefas domésticas. Consideram que essa contribuição não interfere nos estudos, ao contrário, analisam como parte de sua “rotina normal”:
“Bastante… ajudo na arrumação e na comida… faço o básico e ainda oriento as minhas irmãs.” Ana, 16 anos, ESF.
“E só ajudo nas tarefas de casa… às vezes eu ajudo na loja do meu pai também.” Carol, 16 anos, ESF.
Esses relatos possivelmente ocorrem nas famílias que não possuem empregada doméstica mensalista ou naquelas em que as mães possuem uma ocupação profissional. Trata-se de um processo de aprendizagem da criança e do adolescente nas tarefas domésticas desenvolvidas no âmbito familiar. De acordo com Porto e Dorz [27], a rotina familiar desempenha papel fundamental na socialização e é parte constituinte da cultura íntima da família. Dentre as atividades de rotina, a tarefa doméstica (TD) tem sido apontada como uma das estratégias para investigar tópicos centrais do desenvolvimento humano.
Alguns fatores podem potencializar e dificultar a participação de crianças e adolescentes nas tarefas domésticas a partir do estabelecimento da relação com a família e com outros contextos em que se inserem. A participação integrada dos membros da família nas tarefas domésticas é fator motivador para as crianças e os adolescentes. A divisão de tarefas domésticas entre todos os membros familiares e o desejo de ajudar envolvem um processo de aprendizagem vivenciado culturalmente no cotidiano, podendo contribuir na promoção de responsabilidades e colaboração coletiva [28].
No entendimento de Sarmento [29], tanto a criança como o adolescente são considerados cidadãos de direitos e precisam conhecer seu território, se apropriar dele para que o ocupe. Considera que o ambiente familiar (lar, casa) é potencialmente educativo na medida em que é o território do abrigo, do encontro, do possível, da troca, da criação. E, portanto, a apropriação do território incentiva a se relacionar e perceber seu pertencimento àquele lugar. Permite a interação com os espaços, com as pessoas, com o meio ambiente, ou seja, se tornar parte do lugar. Oferecer recursos para a criança e adolescente assumirem seu papel de cidadãos, e ocupar lugar na família, e na comunidade é um desafio a ser alcançado.
A maioria dos adolescentes que participaram dessa pesquisa estuda e pouco ajuda em casa, podendo ter uma vida escolar menos sacrificada que uma grande parcela das adolescências brasileiras.
Entender a importância da escola, como cenário principal desejável para as adolescências e os fatores que os levam a evadir da escola, é a preocupação desse artigo, em que a análise do conteúdo dos relatos de vivências escolares nos permitiu algumas ilações, que, por certo, não podem ser generalizadas, já que se trata de uma coleta pelo método grupo focal, porém nos dá boas pistas sobre a questão.
Em primeiro lugar, a compreensão de que o modelo secular sala de aula, carteiras e professor falando quarenta minutos seguidos já está saturado e, cada vez mais, se recente da concorrência com as novas tecnologias que encantam a atual geração. Percebemos também que nossa sociedade está mais imediatista e que o ritmo vagaroso da vida escolar já não os seduz.
Os relatos nos mostram que a escola tem sido um local de relações sociais (nem sempre agradáveis) e que a atividade fim (estudar) não é prazerosa. Eles se ressentem da rigidez curricular, de uma escola que não fala sua língua e da pretensão do sistema educacional de que existe um aluno padrão, que tem que seguir suas diretrizes sem dificuldades. Os participantes da pesquisa tiveram relatos de boas lembranças dos laços de amizades, mas alguns tiveram relatos de sofrimento por bullying e outras formas de violência.
O único participante que abandonou a escola não quis se manifestar sobre o assunto, entendesse que por ser uma lembrança dolorosa. Os números da evasão escolar são um verdadeiro obstáculo para a política de educação no país, já que resistem a diminuir. Vivemos num país de enormes contrastes sociais, em que uma parcela importante da população em idade escolar tem que entrar precocemente no mercado de trabalho para contribuir no orçamento familiar. Soma-se a isso, a gravidez precoce; a repetência; as dificuldades escolares (TDAH, Deficiência Intelectual, etc.); o cansaço da jornada de trabalho; o ingresso ao crime organizado e outras mazelas.
A evasão escolar é um problema que ultrapassa os muros da escola e deve ser assumido pela sociedade como um todo: professores, gestores, familiares, especialistas em segurança, trabalhadores da saúde, enfim, a sociedade.
Até aqui, poucas políticas têm sido implantadas para apoiar a transição entre a vida escolar e a vida laboral, destacamos a Lei do Jovem Aprendiz (Lei 10.097/2000) e a lei “Pé de Meia” (14.818 sancionada em janeiro de 2024), ambas tendem a facilitar essa transição, mas são suficientes?
A questão é: que futuro esperamos e desejamos para as nossas adolescências? Esse trabalho, pela sua estrutura de grupo focal, não pode ser generalizado, mas tem a pretensão de estimular novos estudos sobre esse tema tão importante para o futuro do país.
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